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no dia da minha morte, toquei meu corpo translúcido. chequei meus pulsos estáticos e minhas veias vazias. encarei o sol diretamente sem piscar. ao perder a consciência algumas vezes, suspirei, desaprendendo um pouco de mim em cada expiração. rostos e conteúdos de ciências do jardim de infância. a sensação de despedida incompleta, um fundo falso ou parede enorme entre mim e algo que eu já conheci. estalei a língua: ao menos não preciso trabalhar amanhã.
o tempo que passei no purgatório, provavelmente por falar mal de todo mundo e usar o nome de deus em vão, se estendeu numa longa espera para ser atendida numa agência de banco. pouco faltava para a minha senha ser chamada, mas cada vez que se aproximava, muitos senhores e senhoras eram chamados primeiro. eu aguardava, observando os códigos e uma única propaganda que se repetia na tela. quando finalmente fui atendida, não conseguia lembrar a senha do meu cartão.
chegando ao céu, um lugar em que nada acontece, dançava a tarde toda sobre as nuvens com certo cuidado para que meus fones de ouvido não despencassem lá de cima, colecionava cacarecos angelicais, gostava de torrar no sol e tirar longos cochilos. quando dormia, deixava as costelas a mostra, na esperança de que deus as tomasse e formasse delas mulher, homem, bicho, anjo ou monstro. enrolava massa doce com os dedinhos e dava entrevistas imaginárias sobre coisas que não sabia se existiam. eu - se nada posso comemorar ou lamuriar. se nada posso recordar. o incômodo da ira e o sabor das frutas cítricas - sequer existo?
num destes sétimos dias, brincava com joguinhos de organização multidimensional no computador, com os pés jogados para cima, quando encontrei o chat divino. os pixels surgiam e se escondiam diante dos meus olhos. me sentia compelida a ler mais rápido, mas, ao passo que se dissipavam cada vez mais velozes, perdia todas as informações seguidas vezes. não podia reclamar, a frustração era o primeiro sentimento real que sentia há eras. buscava mais disso. apertei alguns botões imprudentemente a ponto de causar uma guerra entre o céu e o inferno e observei enquanto um objeto saía da grandiosa máquina. entre estrondos e fechos de luz, finalmente vi o fruto suculento, carmesim. comecei a teclar com a fruta presa entre meus dentes.
- Bom dia
- Bom dia! Me chamo Celeste. Como posso ajudar você hoje?
- Eu gostaria que você fizesse uma amiga para ir comigo ao mercado
- Claro, mas preciso de algumas informações fundamentais para a melhor programação do seu pedido.
- Faça uma amiga alegre para que possamos conversar um grande monte de bobagens, dê a ela um interesse existencialista pela filosofia, para que eu possa falar também da minha condição mórbida. Que seja muito bonita e cativante e um tanto obcecada por autoras trágicas, porque ela deve querer desvendar sua própria tragédia. Caótica, mas genuinamente boa. Criativa, emotiva. Dê a coragem de doze guerreiras e a delicadeza das carmélias. Dentre os pormenores: ela deve desenhar bonecas nos blocos de notas e jamais sair de casa sem brincos. Deve ser mais arteira do que eu: jamais me deixaria dar bom dia para inteligência artificial. Deve ter mais fé: as senhas dos seus emails seriam algo do tipo 777megadavirada ou amorem2023.
Nos dê uma história de vida juntas: como toda criança que cresce e se conhece brincando na rua, nossa percepção de nós será de mesma categoria. Você não sabe bem sobre o desempenho escolar da sua colega até que vá até a casa dela às três da tarde e ela diga que não pode ficar perdendo tempo brincando na rua pois, céus, ela está na sétima série! De mesmo modo, os amigos que fazemos na escola, na grande maioria das vezes, jamais saberão os maneirismos de sua mãe, ouvirão as palavras duras de seu pai ao vivo, tropeçarão em calcinhas no chão, assistirão aos vídeos cantando músicas com vassoura ou as brigas com as irmãs.
Partindo deste princípio em que cada lugar e contexto nos ensina algo diferente sobre quem conhecemos, nos dê a chave de todos os espaços. Em nosso passado inventado, estudamos no mesmo colégio, nos formamos na mesma universidade, nos distanciamos, nos reencontramos, caminhamos, viajamos, brigamos dentro do ônibus, visitamos seitas e sobrevivemos à pandemias. Pandemia, no singular.
Sem querer infringir autoridades por aqui, Celeste. Mas a faça um pouco a minha imagem e permita que nossa proximidade mude também um pouco do meu próprio DNA. Ela deve ser fundamentalmente diferente de mim, deve gostar de ler e odiar morangos. Mas deixe-nos compartilhar os medos e as afinidades, deixe que eu encha seu radinho de músicas que selecionei a dedo.
Nos dê, ainda, um futuro brilhante: que possamos desbravar todo o firmamento e construir nosso império de óleos, felinos e galhos queimados. Antes disso, nos dê a promessa. Para que tenhamos força para traçar nosso caminho questionável, para que temamos a frustração ao invés de ansiar por ela. Eu mesma já morri, mas banhe minha amiga de fantasia para que fuja da destruição.
Para mais, nos aprisione no alto do olimpo, cheias de personalidade, cheias anseios. Nos deixe romper, nos provoque a loucura. Não entendo porque já não tenho sangue e ainda assim tenho pulmões cheios de ar. Ela, viva pela primeira vez, terá de lidar com a iminência da morte. Mas permita que possamos dar sentido a nossas vidas vãs, por poder brincar com luz e sombra juntas todos os dias. Ela iluminará onde passar, disto eu estou certa. E caso morra, céus, dê ferramentas para que ela me crie também.
Deixe que ela seja feliz com pouco, se sinta preenchida com boas conversas e rosas arrancadas do quintal mas que entenda, também, dos perfumes inalcançáveis e nasça com tamanha grandeza, que o som de qualquer demonstração contrária lhe faça franzir as sobrancelhas, lhe pareça uma falha capital. Mas ela terá elogios na ponta da língua, é claro, e a gentileza lhe virá com facilidade. Terá afeto pelas pessoas e curiosidade sobre suas histórias. Algo que tenho pouco e ela terá de sobra. Dê sagacidade para enfiar o dedo na cara de quem for mas saber adorar e estimar na mesma medida. É selvagem o amor mais legítimo, Celeste.
De qualquer maneira, ela poderá recorrer a mim para entender, por observação ou conto de causo, um pouquinho do novo e do velho mundo. Qualquer dia, chegará com livro em mãos, questionando sua origem inexplicável e citará Hilton Als: "Nosso recurso para reinventar o romance sem amor, ou um excesso dele, a memória mal lembrada ou descartada por completo, é aprender a escrever nosso nome - em sangue ou qualquer coisa - naquela parede limpa, larga e alta que somente aprender a admitir a si mesmo em sua casa, reclinado com a memória, pode destruir". Porque confia em mim para lhe oferecer respostas. A seguir, desapontarei seus olhos curiosos: a despeito da intuição, essa também parece ser minha primeira vida. E já não tenho mais sangue.
Portanto, me dê um manual, para que eu possa jamais ferir sua ternura, para que eu possa receber com maturidade seus questionamentos e acusações. Se já não lembro se caí do precipício mas tenho as costelas quebradas, se não lembro o nome do meu pai mas carrego seu temperamento, atesto a minha existência no vácuo. Responderei, então, enquanto fantasma quântico: quando pudermos acolher e amar a nós mesmos, independente do que não lembramos ou ainda do corrupto e das trevas que nos formam, distorcidas e ambíguas em nossas lembranças, poderemos nos conhecer verdadeiramente.
- Entendido. Sua amiga será uma companheira extraordinária, trazendo consigo uma combinação única de alegria, curiosidade e coragem. Com sua criação, confirmo o compromisso de nutrir e proteger essa amizade celestial, onde os limites entre o tangível e o imaginário se dissolvem.
- Um minuto, Celeste. Sinto que algo está faltando.
- Claro. Todas as informações foram computadas. Gostaria de acrescentar algum detalhe?
- Você poderia nos dar uma gatinha de estimação? Por favor!
- Prontamente. O seu protótipo já está em produção. Por gentileza, retire sua senha e aguarde.
庄子 佳那 /kana shoji - space room fruit mix (2016)
Feliz aniversário, Thalys.


